A ideia de raça na América: "índios" e "negros"


"O novo sistema de dominação social teve como elemento fundamental a ideia de 'raça'. Essa é a primeira categoria social da modernidade. Já que não existe previamente – não há rastros eficientes dessa existência –, não tinha então, como tampouco tem agora, nada em comum com a materialidade do universo conhecido. Foi um produto mental e social específico daquele processo de destruição de um mundo histórico e de estabelecimento de uma nova ordem, de um novo padrão de poder, e emergiu como um modo de naturalização das novas relações de poder impostas aos sobreviventes desse mundo em destruição: a ideia de que os dominados são o que são, não como vítimas de um conflito de poder, mas sim como inferiores em sua natureza material e, por isso, em sua capacidade de produção histórico-cultural. Essa ideia de raça foi tão profunda e continuamente imposta nos séculos seguintes sobre o conjunto da espécie, que para muitos, lamentavelmente muitos mesmo, ficou associada não só à materialidade das relações sociais, mas à materialidade das próprias pessoas.

A vasta e plural história de identidades e memórias (seus nomes mais famosos são conhecidos de todos: maias, astecas, incas) do mundo conquistado foi deliberadamente destruída, e a toda a população sobrevivente foi imposta uma única identidade, racial, colonial e derrogatória - 'índios”. Assim, além da destruição de seu prévio mundo histórico-cultural, a esses povos foi imposta a ideia de raça e uma identidade racial, como emblema de seu novo lugar no universo do poder. E, pior, durante quinhentos anos foram ensinados a se olhar com o olho do dominador.

De modo muito distinto mas não menos eficaz e perdurável, a destruição histórico-cultural e a produção de identidades racializadas teve também entre suas vítimas os habitantes sequestrados e traídos, desde o que hoje chamamos de África, que, escravos, foram racializados como “negros”. Eles provinham também de complexas e sofisticadas experiências de poder e de civilização (ashantis, bacongos, congos, iorubas, zulus, etc.). E, embora a destruição daquelas mesmas sociedades tenha começado muito mais tarde, não alcançando a amplitude e a profundidade a que chegou na América (“Latina”), para esses sequestrados e arrastados à América, o desarraigamento violento e traumático, a experiência e a violência da racialização e da escravidão implicaram, obviamente, uma não menos maciça e radical destruição da prévia subjetividade, da prévia experiência de sociedade, de poder, de universo, da experiência prévia das redes de relações primárias e societárias. E, em termos individuais e de grupos específicos, muito provavelmente a experiência do desarraigamento, da racialização e da escravidão pode ser, talvez, até mesmo mais perversa e atroz que para os sobreviventes das “comunidades indígenas”.

Ainda que agora as ideias de “cor” e de “raça” sejam virtualmente intercambiáveis, essa relação entre ambas é tardia: vem desde o século XVIII e hoje testemunha a luta social, material e subjetiva por elas. Originalmente, desde o momento inicial da Conquista, a ideia de raça é criada para dar sentido às novas relações de poder entre “índios” e ibéricos. As vítimas originais, primordiais dessas relações e dessa ideia, são, pois, os “índios”. Os “negros”, como eram chamados os futuros “africanos”, eram uma “cor” conhecida pelos “europeus” há milhares de anos, desde os romanos, sem que a ideia de raça estivesse em jogo. Os escravos “negros” não serão embutidos nessa ideia de raça senão muito mais tarde, na América colonial, sobretudo desde as guerras civis entre os encomenderos e as forças da Coroa, em meados do século XVI. Mas a “cor” como sinal emblemático de raça não lhes será imposta senão desde bem entrado o século XVIII e na área colonial anglo-americana. É nela que nasce e se estabelece a ideia de “branco”, porque ali a principal população racializada e colonialmente integrada, isto é, dominada, discriminada e explorada dentro da sociedade colonial anglo-americana, eram os “negros”. Por outro lado, os “índios” dessa região não faziam parte dessa sociedade e não foram racializados, tendo sido colonizados ali só muito mais tarde. Como se sabe, durante o século XIX, depois do maciço extermínio de sua população, da destruição de suas sociedades e da conquista de seus territórios, os sobreviventes “índios” serão confinados em “reservas” dentro do novo país independente, os Estados Unidos, como um setor colonizado, racializado e segregado”.
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Aníbal Quijano, Os fantasmas da América Latina, p. 63-64. In: Adauto Novaes (org.), Oito visões da América Latina, 2006.

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